DIES FESTUS IN TERRA SANCTE

Ao certo não se sabe quando foi fundada a Santa Casa da Misericórdia da Feira, mas, do seu espólio escrito consta uma escritura datada de 1556 na qual a Misericórdia se fazia representar pelo Conde Dom Diogo Forjaz Pereira, seu Provedor. Até à data, é essa a mais antiga referência a esta Misericórdia, atestando que a sua fundação foi seguramente anterior a 1556.

No local onde agora existe a Igreja da Santa Casa da Misericórdia da Feira existiu a antiga Igreja Paroquial de S. Nicolau que, em 1566, se transferiu para a atual Igreja Matriz, anexa ao Convento dos Loios. Os Irmãos da Santa Casa da Misericórdia, cuja Irmandade ficou alojada no local da antiga paroquial, foram promovendo reparações nesse velho templo; no entanto, o estado de ruína era tal, que, por volta de 1690, se deu início à construção da igreja que agora existe. Foi implantada na zona alta do centro urbano, o que permitiu o desenvolvimento de uma magnífica escadaria aproveitando o relevo natural do terreno. A escadaria em granito, datada do século XVIII, é constituída por vários lanços separados por patamares; com alguns pares de lanços paralelos, acaba num adro frontal à igreja. A meio da escadaria está exemplarmente integrado um chafariz de inquestionável beleza, também em granito. Aos pés do monumento, fica o caminho para o convento e o castelo que da Misericórdia se avistam, como que colocados em bandejas para enfeitar um cenário fabuloso.

Desconhece-se o autor do projeto arquitetónico, cuja execução se prolongou pelo século XVIII. Embora o projeto tenha sido executado em pleno período barroco, tem profunda influência da arte maneirista que prolongou o grande ciclo renascentista. O gosto maneirista reflete-se sobretudo na decoração da fachada principal, resultando um edifício maciço, com paredes grossas, de dimensão contida, mas amplo. A fachada principal dispõe-se simetricamente em três panos, com a parte central ladeada por duas torres sineiras; sobre o portal, bordeado por pilastras rematadas por pináculos, está a janela de iluminação do coro-alto, encimada por frontão integrando nicho decorado, ao modo das fachadas de igrejas da segunda metade do século XVI.

No interior, à nave e à capela-mor foram anexadas uma capela lateral e as dependências da sacristia e das salas do despacho e de reuniões. O altar-mor é um magnífico exemplar de talha barroca dourada, construído no primeiro quartel do século XVIII. As paredes laterais albergam dois retábulos. O coro-alto, oposto ao altar-mor, assenta num arco rebaixado sobre a entrada principal, quase tocando a tribuna dos mesários.

A estrutura da igreja ainda em construção foi abalada pelo terramoto de 1755, desabando a abóbada da nave e os primitivos caixotões com pinturas barrocas. Da cobertura apenas se salvou a abóbada da capela-mor. Assim começaram os problemas de conservação desta igreja, ainda nem sequer acabada de construir.

Ao longo do século XIX, em consequência do enquadramento sociopolítico a nível mundial e em Portugal, a Santa Casa da Misericórdia da Feira perdeu todos os seus bens materiais para além da igreja que, obviamente, se foi degradando. No século XX, as carências sociais agravadas pelas duas guerras mundiais dirigiram as prioridades da Santa Casa da Misericórdia da Feira para missões assistenciais e sociais. Em julho de 2008 o Lar de S. Nicolau abriu as suas portas para dar resposta às necessidades dos mais idosos. No início do século XXI as missões assistenciais esgotavam quase todos os recursos financeiros da Santa Casa da Misericórdia da Feira, pelo que a igreja, apesar de nunca ter ficado ao abandono, apenas pôde ser sujeita a meras reparações pontuais. Apesar disso, em 2012 a Igreja da Misericórdia (com as suas dependências anexas, a escadaria e o chafariz) foi classificada como monumento de interesse público, atestando a sua valia patrimonial.

Em 2014, a seguir a um inverno duro que não deu tréguas à chuva, era necessário usar baldes dentro da igreja para aparar a água e as coberturas e paredes estavam excessivamente manchadas por humidade. Os soalhos estavam muito danificados e as vedações das janelas já não cumpriam a sua função. As talhas estavam degradadas. O magnífico altar-mor, anunciando a possibilidade de ruir, tinha as colunas inclinadas e a talha coberta por um bolor que lhe roubava o brilho do ouro. Os paramentos guardados no arcaz da Sacristia cheiravam a mofo e os velhinhos documentos que testemunham a história da Misericórdia pareciam esboroar-se. A degradação da igreja era evidente, tendo-se tornado urgente tomar medidas para estancar a sua progressão.

A aprovação do projeto MISERERE, submetido pela Santa Casa da Misericórdia ao Programa NORTE2020, permitiu salvar a Igreja da Misericórdia da ruína. Com o cofinanciamento do Programa NORTE2020, da Santa Casa da Misericórdia da Feira e da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira e também a colaboração da Junta de Freguesia e o mecenato de Irmãos da Santa Casa e muitos outros feirenses, foi possível reabilitar a igreja, as suas dependências anexas, o escadório, os espaços exteriores envolventes, bem como todo o espólio móvel.

A promoção do culto religioso católico é a principal missão da igreja reabilitada, tendo sido possível retomar atividade religiosa regular. Foi criado um percurso interpretativo na igreja e nos compartimentos anexos, para se poder usufruir de uma leitura mais abrangente das obras de arte sacra enquadradas na arquitetura. As dependências anexas da igreja foram abertas à comunidade para realização de atividades de formação e socioculturais, nas quais a componente musical é particularmente relevante. A execução do Projeto MISERERE permitiu a integração da Igreja da Santa Casa da Misericórdia e das suas dependências anexas em programas de turismo religioso, cultural e gastronómico.

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Conceição Alvim Ferraz, fevereiro de 2022